sexta-feira, 29 de abril de 2011

Corrente Ofídica

    A aula não acabava nunca,que comecei a pensar que iria mofar lá,e talvez mofasse,a umidade devia estar nos 90%!Também com uma chuva torrencial caindo sobre a cidade.O céu estava tão cinza que se o azul voltasse dominá-lo alguns poderiam até se assustar com a mudança.
    Faltava uns poucos minutos para aula acabar e o professor já tinha dado a matéria,o tédio era grande.Algumas pessoas conversavam, e outras,como eu, não tinham saco pra isso,então abaixavam a cabeça ou recostavam na parede e fechavam seus olhos pra tirar um cochilo.Eu peguei o celular no bolso do casaco para matar o tempo mexendo nele,mas logo quando cheguei no menu do aparelho um aviso de:Bateria Fraca,ocupou a tela.
   - Merda!-eu disse baixinho.Desisti de procurar entretenimento,apoiei o cotovelo na mesa,minha cabeça na mão do braço do cotovelo e fechei os olhos.Nesse momento o sinal tocou.
    Já fora de sala,andei pelo corredor em busca de liberdade.Coitado de mim.Cheguei no pátio externo,olhei o lado de fora e vi um rio no lugar da rua.Não acreditei,mas sim,a chuva havia me ilhado.Aliás,ilhado metade do bairro,segundo alguém que passou do meu lado ao celular.A água estava tão alta que nivelava com a calçada,que devia ter uns 50 cm da borda até a base."Pelo menos se ninguém passar com o carro pela rua,dá pra andar na calçada",pensei tentando ver um lado bom.
    Bem,eu não ia ficar lá a tarde inteira esperando a água abaixar,sai da escola pisei na calçada molhada e tomei o rumo da direita.Porém dei poucos passos.Gritos e pessoas correndo a minha volta me fizeram virar e ver um correnteza arrastar tudo em seu caminho,de pessoas a carros.
    Nessa hora eu devia ter agradecido Deus a minha habilidade de corredor,mas estava muito ocupado tentando salvar a minha vida.Corri com todos as minha forças,mas não era necessário.Quando percebi que os sons da água mudavam demais,muito pra uma correnteza constante e retilínea.Minha curiosidade me fez virar de novo.Poderia ser a última coisa que faria na vida,poderia ser atingido por litros de água suja e me afogar,mas não foi isso que aconteceu.O que vi foi a água barrenta se comportar como um animal!Uma cobra comprida de várias cabeças,escolhendo pessoas,virando esquinas,caçando gente nas ruas transversais.
    Estava estupefato,nem me mexia.Quando dei por mim estava sozinho na rua,só ouvia alguns ruídos de correria e gritos distantes.As sensações vieram juntas:da calça molhada colando na batata da perna(por correr em cima de poças),da minha pele gelada e molhada de suor,a quentura que o moletom causava no meu tronco, do frio queimando meus pulmões e minhas narinas quando ofegava.
    Eu olhei para o rio/rua no momento em que suas águas recuaram,se juntar no cruzamento da mesma com outra e formaram uma torre de água.Segundos depois de formada,a torre se modelou em uma grande naja rainha.A cobra de água marrom olhou para mim como uma cobra real olha para um rato antes do ataque.Recomecei a correr antes de saber se ela era do tipo que acabava com tudo rápido ou se gostava de brincar com a comida.
    Virei várias ruas desertas em busca de abrigo,porém a serpente não deixava.E sem perceber o meu desejo foi realizado quando fui puxado pra dentro de um vão.Cai em uma escada dura batendo minhas costelas e minha bacia nos degraus.Olhei para cima,ver o gênio que atendera meu pedido e vi que na verdade era uma "gênia".Ela me agarrou pelo ombro e me fez subir as escadas,e no topo desta ela disse:
   - Você tá bem?- Eu assenti.Era uma mulher de meia idade,com o corpo magro e malhado,tipo a Madonna.Ela vestia um macacão de ginástica e estava com o cabelo preso em um rabo-de-cavalo.
   - Você pode me dizer o que tá acontecendo?!- perguntei desesperado.
   - Ninguém sabe...Só sei que isso tá acontecendo em todas as ruas daqui.- Informou ela aflita.- Dá pra ver tudo das janelas daqui da academia.- acrescentou.Vendo a minha falta de entendimento abriu a porta dupla que estava atrás de si.
    Lá dentro havia várias pessoas,algumas com roupas de malhação e outras com roupas de seu cotidiano,fugitivos que nem eu,imaginei.Os aparelhos de ginástica serviam de cadeiras,bancos e até(para pessoas em choque) de divãs.A minha "gênia do vão" me falou para pegar água na lanchonete da academia e me juntar aos outros,que estavam tentando achar algum canal na TV que não tivesse fora do ar.
    Com a garrafa na mão,eu fui até a parede defronte as vitrines da academia.Os quarteirões eram ilhotas num mar de lama e água,dava para ver ainda cobras d'água(literalmente) passeando em busca de presas.Escorreguei na parede e sentei no chão,péssima hora para relaxar.
    Todas aquelas pessoas nem viram o que aconteceu.Não viram a cabeça da "cobra d'água" aparecer e no instante seguinte investir contra as janelas, e nem sentiram a água e o vidro as atingindo,mas eu veria,sentiria.Apertei a pequena garrafa pet,ouvi ela estalar.Senti o medo aumentando na medida em que a parede de água,metal,vidro e gente avançava.Corri tanto pra acabar a aventura sentado e me cagando de medo,que ironia.
    Adorei quando me cutucaram e falaram:"Já acabou,'vambora'".Esfreguei o rosto,que estava entre meus braços cruzados sobre a mesa,e levantei da carteira.No corredor fiquei meio tonto e demorei pra despertar por completo.
   - Que sonho sinistro,maluco!- constatei cheio de sono na voz.
    Só do lado de fora acordei mesmo.O céu estava cinza ainda,mas a rua não era nenhum rio,só havia alguns bolsões d'água.Também não tinha nenhum arco-íris.As coisas estavam normais,tirando eu com a lembrança do sonho que me fez pular ao ver um filete de água correndo a sarjeta até o bueiro.Mesmo depois de perceber que tudo não passou de um sonho(ou pesadelo) tive curiosidade de verificar se a academia realmente existia mesmo.Tomei o rumo da direita e segui pensando porque minha imaginação era tão fértil em sonhos e tão estéril nas aulas de redação.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

O Lago

    Sentada no último degrau do píer, com os pés agitando a água cristalina,estava Nina.Ela olhou para o leste,apertando os olhos pois o sol nascente que sai de trás da montanhas atrapalhava-a.O dia parecia que ir ser ótimo.Logo viu que estava enganada,uma nuvem cinza se pôs entre o sol e ela.A massa cinzenta avançou no céu como um lençol.

-         Nossa, que esquisito!- Comentou ela.

   Ela se levantou,subiu os degraus e olhou para o  enorme lago,suas águas começavam a ondular.A nuvem já tomava conta de metade do céu.
   Tirando a feiúra cinza que cobria o lugar,era lindo lá.As montanhas,o lago,a casa.Uma casa imensa que ficava os pés um dos montes,feita de madeira nobre,cheia de ângulos retos,forma retangular e com enormes janelas de vidro que ocupavam o lugar de uma parede.Era ótimo passar aquele final de semana com André,seu namorado.Depois de dar uma última olhada na paisagem ela apertou o robe contra o corpo e caminhou pelas tábuas escuras do píer até a casa.
    Já dentro da casa,Nina se dirigiu a cozinha para preparar o café.
    O apito do bule anunciou a entrada de André,que com um sorriso sonolento disse um “bom dia” baixo.Ele abraçou Nina por trás e deu-lhe um beijo no canto da boca.Ela sorriu.Ele olhou para o céu e arregalou os olhos.

-         Pô!Mas a previsão do tempo disse que ia fazer sol e calor de 25 graus!
-         É,também achei esquisito.E lá fora já ta esfriando.- Acrescentou Nina.

   Depois de tomarem uma xícara de café e comer ¼  de bolo de laranja,os dois foram para a sala de estar.
   Ao meio dia a chuva começou a apedrejar a casa com força,o vento açoitava as árvores das matas que cobriam as montanhas e os trovões atrapalhavam o casal sentado no sofá que via tv.
   Um relâmpago iluminou a sala toda com seu brilho azulado,desfazendo a “conchinha” em que os namorados estavam.Eles olharam pelas grandes janelas o efeito que ele fez na paisagem e poucos segundos depois se assustaram com o trovão ensurdecedor que apagou todas as luzes da casa.Nina irritada reclamou:
-         Puta que pariu!Será que a gente vai conseguir aproveitar essa porra de final de semana?! Chegamos ontem a noite depois de horas de viagem de carro pra ficarmos dentro de casa sem luz?!
-         Cacete!Se acalma Nina eu vo ligar pro caseiro.Ele vai ligar o gerador.- Depois de suspirar,André foi à bancada da televisão e pegou o rádio ao lado dela.Ele apertou um botão na lateral do aparelho,que fez seu som característico e irritante avisando que o sinal fora mandado.
-         Zé,liga o gerador faz favor.
-         Craro Seu André!- Respondeu com prontidão o caseiro Zé Maria.
-         Valeu cara.- Disse André finalizando a chamada e botando o rádio na estante novamente.Pouco mais de 2 minutos depois as luzes reacenderam.

     Antes de André se sentar Nina sugeriu que eles assistissem um filme,então ele foi apanhar o DVD.Ele conectava a bugiganga cheia de fios enquanto ela pegava umas “porcarias” na despensa.O filme escolhido era uma comédia satirizando fatos dos relacionamentos.Que o estúdio de dublagem fez o favor de estragar o título,que era:”Uma Comédia Romântica Um Tanto Ácida”  .
     Nem era 13:30 quando os dois haviam caído no sono e perdido metade do filme.

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    A chuva caía sobre seus corpos jovens.Suas roupas molhadas colavam no corpo.Estava tudo deserto.Eles dançavam em uma sincronia desorganizada.Eles riam.Se beijavam.Se rijavam.Se beiam.Sua valsa era o som da chuva que batia neles mesmo e no chão.Chão que era cinza,como tudo ao seu redo.O horizonte era nebuloso.Mas eles estavam excitados e vivos naquele vazio úmido.Ela começou a tirar seu roupão.Ele abaixou sua samba-canção.Ela levantava o babydoll enquanto ele já pronto, tirava a última peça de baixo que sobrava no corpo dela.Não havia casualidade no seu ato carnal, só paixão.Eles iam e vinham,harmoniosamente.Até que um rangido longo e angustiante atrapalhou-os e um estrépito de desmoronamento os despertou.

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    Os sons altos que indicavam desgraça acordaram Nina e André de seu sono e seu sonho.Os namorados atordoados se levantaram do sofá resmungando e alongando-se.Ele massageou a área entre as pernas e ela os seus seios.A chuva não tinha parado e a casa estava de novo na escuridão.Um clarão permitiu André verificar as horas no relógio da parede, “19: e alguma coisa”  foi o que ele permitiu-o ver.
    Uma corrente de ar gelado passou pelo casal.Nina apertou o robe contra si.André abraçou-se antes de abraçar sua amada.Ela vinha da cozinha.Eles foram a sua origem.
    Entraram na cozinha pelo portal que a ligava a sala.Cozinha compridissima onde se podia entrar também por um portal ligado ao vestíbulo.Eles olharam para sua outra extremidade.Uma árvore gigantesca caíra sobre boa parte da cozinha,além de ter destruído parte da pia.Seus ganhos nodosos e grossos quebraram madeira,azulejos e mármore caros.Nina ficou boquiaberta e André xingou o nada,lamentando-se.Ele foi a um armário do seu lado para apanhar uma lanterna e ver o tamanho do estrago (estava pensando no que seus pai diriam).
     A luz azul de um raio que caíra próximo iluminou a casa,incluindo a cozinha.André pegou a lanterna na mesma hora que Nina gritou apavorada.André imediatamente se virou e ligou a lanterna.Ele iluminou a imagem mais assustadora que vira na vida.O caseiro Zé Maria estava entre os galhos da grande árvore,morto.
     Nina abraçou com força André,ela choramingava.
     Ele observou o corpo.Estava sem camisa,com uma corda envolta do pescoço,a outra parte dela estava em um dos galhos.Seus olhos estavam esbugalhados,sua última expressão,gravada pela morte,era de medo e espanto.O homem magro,de meia idade,pardo,estava pálido.André desceu o olhar e viu em seu peito nu e ensangüentado os dizeres “ Surpresa” escritos na pele do morto em riscos vermelhos.Sangue descia do final das letras.
     O dia fora escuro,seus sonhos emocionantes.Mas aquela noite seria muito mais escura,muito mais sombria,e o que aconteceria dali pra frente seria pior que qualquer um mais perturbadores pesadelos deles.